13 janeiro 2011

As lágrimas de Carol



Estava sozinha de noite no apartamento que dividia com um papagaio. Abriu a gaiola, adeus. Andou no escuro dois cômodos. As luzes das janelas do edifício brincavam de flash e silhueta. Deitou no sofá, encostou a cabeça no braço e um filme rodou em sua cabeça. Se lembrava dos conselhos dados pelo seu pai. “Ouça a razão, minha filha”. Não sabia o que seu pai queria dizer com a palavra razão. Ela era a sua Carol. Cresceu, fugiu, estudou, tinha dinheiro e uma vida confortável.

Estava sozinha e, quando estava sozinha, sua mente se perdia entre sonhos e devaneios do passado e do futuro. Uma solidão povoada de estranhos íntimos, horas vagas preenchidas novelas, fofocas, moda, Orkut, homens, carros, barulho, propaganda, dinheiro, compra, venda, miséria, violência. Uma aquarela subconsciente formando volumes abstratos, incompreensíveis.

Na tarde daquele dia, antes de ir trabalhar, enquanto tentava atravessar à outra margem do calçadão da movimentada avenida principal, sem motivo algum, quis descobrir como seria se jogar na frente da van em alta velocidade que se aproximava. Três, dois,um, meio metro de distância, e... nunca teria coragem de descobrir. “Que idéia...”, prosseguiu.

Ia para mais uma reunião de políticos da região onde se discutiria novas medidas para melhorar a vida do “povo”. A solução mais uma vez estava próxima. Ela não se importava. Na verdade, já tinha automatizado todo o cerimonial e pouco fazia diferença. Era responsável pela ata. Autoridades e autoridades no púlpito falavam sobre igualdade, com as caras espelhadas nas mesas reluzentes de madeira. As taças de cristal, que reverberavam copos plásticos cheirando a baratas do público, vibravam em consonância “por uma vida menos desigual”.

De súbito, foi invadida por aquele sentimento revolucionário contra a hipocrisia que a movia na universidade. Durante a execução do hino nacional, enquanto todos se apressavam em levantar ostentando a expressão ufanista de levar a mão ao peito, Carolina pensou em permanecer sentada, sem dizer nada, em protesto íntimo àquele ato artificial.

(Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte)


Lembrou-se de uma lição que aprendeu com as próprias quedas: “Num mundo de ideologias profundas, o que vale mesmo são as aparências!” Reviveu a tristeza dessa constatação. Colocou na balança prós e contras da atitude que estava prestes a tomar. “É melhor me levantar”, decidiu um pouco atrasada. Com a cabeça reta, titubeou todos os versos de Joaquim Osório Duque Estrada, vislumbrando a neve esbranquiçada do nada, inconsciente da própria indignidade. Ali, a tristeza começaria a macular sua alma.

Alheia às lembranças a trote de Carolina, a noite galopava. Metade da obscura face do dia jazia pra sempre no passado. O peso dilacerante do momento era preenchido por uma pungente melancolia que queria seguir o mesmo rumo da noite. Carolina precisava chorar. Caminhou para ao quarto, chegou perto do som e escolheu um CD. Deu o play. Deitou-se. Esticou com força o diafragma como a primeira inspiração após a emersão de um afogamento e o ar, violento, desceu rasgando pela garganta até as paredes pulmonares. Aos poucos, como a chuva que salva uma safra, as lágrimas tocaram lenta e tensamente seu rosto, seguindo The Story, na voz de Brandi Carlile.

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