06 dezembro 2010

Heróis e bandidos no espelho da sala

Segunda-feira. Correria nos bastidores do programa televisivo mais popular da região. Depois de todo o final de semana, a equipe de reportagem não havia registrado nenhum fato de grande repercussão que “esquentasse” o noticiário.
- Isso ta parecendo missa! Vou despedir todo mundo e contratar o padre como repórter -, ironizou nervosamente, o apresentador e diretor do programa. – Eu invisto tanto nessa merda e vocês não trazem nada de bom.


Há 2 anos no ar, o grande trunfo do “Programa do Povo” eram reportagens sobre o lado trágico da vida nas cidades. Raras eram as vezes em que o lar dos telespectadores não era invadido por imagens de vítimas ensangüentadas de acidentes automobilísticos ou assassinatos envolvendo tráfico de drogas. As histórias veiculadas, cujos detalhes sórdidos eram amplamente explorados pela equipe de produção, eram depois comentadas com ar de julgamento pelo apresentador. Os assuntos abordados no programa faziam a pauta de toda a população de baixa renda, o principal público do noticiário do meio-dia.

Geralmente, a segunda é o dia mais aguardado pelos telespectadores, quando depois de todo um final de semana de bebedeira, acontecem as tragédias. Mas talvez por um decreto divino, naquela em especial só havia sido registrado um princípio de incêndio e pequenas apreensões de drogas. O programa até tinha número suficiente de reportagens relacionadas à saúde, eventos esportivos e culturais... mas nenhuma polêmica.

A equipe de reportagem já estava acostumada. Toda vez que a “qualidade” das notícias ficava aquém da expectativa geral, um acesso de fúria baixava no apresentador, Lázaro Tomé. Dono de um discurso corajoso que unia opiniões radicais a um moralismo desmedido, tem todas as características necessárias para o tipo de programa que comandava. Não era dono de um “português” muito apurado, mas se comunicava perfeitamente: levava, com sensibilidade, a linguagem popular para frente das telas.

Com essa receita, o ex-tapeceiro que abandonou a faculdade de jornalismo pela metade, conquistou audiência, anunciante e se tornou uma das pessoas mais ricas e influentes da região. Mas seus planos iam além. Seguiria um exemplo amplamente disseminado no Brasil para conquistar ainda mais dinheiro e poder: utilizar da exposição que a televisão proporciona para se eleger a um cargo político. A fórmula? Apresentar os problemas mais chocantes da sociedade no seu programa e, em seguida, trazer a solução, sempre numa apelação tendendo mais ao populismo desmedido do que à ponderação. Estava dando certo. Um partido político já o tinha convidado para disputar as próximas eleições.

Contudo, ele sabia que, para surtiu o efeito desejado, teria que manter dia após dia o nível do programa, que estava prestes a começar.

- Vamo, vamo! Quero todo mundo na rua procurando notícia que do jeito que tá num dá. Vamo... – exigiu Tomé à sua equipe apenas como uma espécie de punição, sem muita expectativa de êxito.

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ENQUANTO ISSO...

... na periferia da cidade, a avó do jovem Celso trás a notícia ao filho, que estava no sofá:

- Olhe Celso, aquele rapaz esquisito do carro branco está de novo atrás de você. Dá um jeito nisso, hein. Não quero gente em frente de casa -, exige dona Luzia.

Por cerca de dez segundos, depois da fala da avó, Celso se concentrou em seus pensamentos. Parecia que assistia na mente o filme de sua vida. Seu pai, um policial, foi assassinado quando ele era ainda era criança. Depois disso, a mãe, ainda jovem, ficou ocupada demais rodando de motel em motel e não tinha tempo para educá-lo. Foi criado pela avó. Desde cedo, a falta de opções culturais e de lazer abriram um caminho mais “fácil” em seu horizonte. Aos 13 anos, fumou maconha. Aos 15, resolveu traficar para ganhar dinheiro. Aos 18, ficou dois meses preso.
Finalmente, aos 21 anos, começava a perceber o atraso em que se encontrava sua vida. Nessa época, conheceu uma garota legal e resolveu tentar um outro caminho: o do trabalho.
Foi quando começaram a pesar todos os prejuízos que seu contexto e suas escolhas lhe trouxeram. Não tinha concluído o ensino básico. Era “manjado” por onde passava. Por dois meses, andou de ponta a ponta da cidade, mas não conseguiu um emprego. Um acidente sofrido na infância o impedia de trabalhar com serviços braçais que requeriam maior esforço.

Sentia revolta. Por duas vezes, traficantes foram a sua casa para convidá-lo a participar de um novo esquema. Utilizariam de um veículo timbrado para levar crack a um município vizinho. Celso seria bem remunerado para servir de “laranja” e assumir a “bronca” caso a polícia aparecesse na jogada. Ele havia se negado a participar do esquema por duas vezes, mas, agora, a tentação havia aparecido num momento de fraqueza, precisava de dinheiro.

Celso se levanta do sofá e vai até a rua onde o aguardava o motorista do carro branco. Dez minutos depois, Luzia escuta apenas a voz apressada do neto dando o recado:

- Vó, vou dar uma saidinha e já volto -, diz.
- Celso! Aonde você vai?! Celso! – pergunta alto, dona Luzia, sem obter resposta do rapaz, já dentro do carro.

Eles partem deixando no ar o ronco do motor diminuindo lentamente o volume, até o ponto de ser totalmente encoberto pela algazarra de bêbados do bar ao lado e pelos gritos das adolescentes tatuadas e seminuas que emperravam o carrinho de bebê. Angustiada, Luzia senta no sofá e permanece alguns segundos com a cabeça no ar. Vê que o neto havia esquecido o celular.

- Meu Deus, onde esse menino foi? -, deve ter pensado aquela senhora branca de 61 anos, de expressão sofrida, 3 casamentos frustrados e seis filhos. Conhecedora da vida, ela sempre lutou para que Celso se endireitasse.

Num gesto quase automático, liga a tevê no momento de começar seu programa diário. Depois de algumas propagandas, surge Lázaro Tomé e seu sorriso amarelo para anunciar a primeira parte do programa:

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NO AR, O PROGRAMA DO POVO!

- Boa tarde, minha gente. É um prazer entrar mais uma vez na sua casa nesta segunda-feira ensolarada e levar as notícias importantes de nossa região, aqui pela TV Nova Era, sua tevê educativa! Felizmente – e felizmente mesmo - neste final de semana não aconteceu nenhuma morte, nenhum acidente grave, nenhum fato de maior gravidade em nossa região. Graças a Deus, tudo na santa paz. É muito bom entrar nos eu lar, trabalhador, dona de casa, e dar uma notícia assim. Queira Deus que fosse sempre assim...uma beleza.

Depois de mostrar um trecho das reportagens que iriam ao ar naquela segunda-feira, o apresentador chama o intervalo comercial. No estúdio, quando se apaga a luz que sinaliza que o programa está no ar, Tomé volta a exibir a expressão de descontentamento pela escassez de “sensação” nas reportagens. Por um momento, pensa em comentar alguma tragédia ocorrida em cenário nacional, mas logo aborta a idéia calculando que seria uma incoerência diante de tudo o que falou no início do programa.

De repente, vibra o celular. À medida que ouve a voz que sai do aparelho, percebe-se a ação da adrenalina percorrendo seus músculos faciais. Sua equipe de reportagem tinha flagrado o exato momento de uma grande apreensão policial. Não era um fato de grande potencial trágico, mas, com uma “forçadinha”, daria para “salvar” o programa de segunda-feira. Depois que as propagandas de empresas de segurança privada e de serviços funerários acabaram, Tomé mal esperou terminar a vinheta da segunda parte do programa. Entrou no ar com o mesmo olhar grave e tom de voz irônico e levemente tenso que caracterizam sua fala em reportagens sensacionais. Como os repórteres preparavam o link para entrarem ao vivo, o apresentador aproveitou para explicar aos telespectadores o que havia acontecido.

- Olha, só... a gente estava até contente porque, depois de tanto tempo, iríamos apresentar um programa sem nenhuma notícia ruim. Estava, né?! Porque parece que é só “falá” que acontece coisa ruim. Parece coisa do... sei lá o quê... Olha só: acaba de acontecer uma grande apreensão de drogas na saída do nosso município. Ainda não temos muitos detalhes, mas é coisa grande. Os policias acabaram de prender traficantes com muita droga, mas muita droga mesmo, aqui na cidade. Nossa equipe de reportagem está lá no local. Olha... É um carro branco com a marca de uma empresa timbrada na lataria com o porta-malas recheado, mas completamente cheio de crack. Eles estavam se preparando para sair da cidade, quando a polícia recebeu uma ligação anônima e chegou aos traficantes. Parece que um jovem, aparentando 21 anos, assumiu toda a responsabilidade.

Como os repórteres ainda não tinham condições de entrar ao vivo, Tomé aproveitou para fazer seus comentários polêmicos que, muitas vezes, alcançam mais repercussão do que a própria notícia.

- A única confirmação é que se trata de um carro branco de nosso município e um jovem de 21 anos assumiu toda a “bronca”! Olha só!Vinte e um anos. V-i-n-t-e e u-m a-n-o-s! Idade de estar trabalhando. Porque isso é coisa de quem não quer trabalhar. Vai falar pra esses “vagabundo” pegar no cabo de uma enxada, ir trabalhar nas “fábrica”. Num vai. Emprego tem e muito. É só procurar. Mas não. Prefere isso. Eu não sei não, mas se acabasse com essa raça de uma vez, muita coisa ia resolver nesse mundo. Muita coisa. Vagabundo, pilantra, mentiroso...

Método utilizado no interior para medir a audiência, as ligações telefônicas naquele horário bombaram, mesmo sem os repórteres conseguirem entrar ao vivo com a reportagem. Lázaro Tomé encerrou o programa prometendo a reportagem completa no programa do dia seguinte. O rosto do rapaz apreendido não foi mostrado.

Enquanto subiam as letrinhas em seu vídeo, na periferia a cidade, Luzia pensava na irresponsabilidade de Celso, insistindo em trilhar um caminho predestinado. Mas também ponderou sobre a falta de opções na infância e da aflição do rapaz em não conseguir pagar a pensão do filho de três anos. Ainda que não soubesse se o rapaz preso era de fato o seu neto, não aparentava grande preocupação. Os golpes da vida lhe desenvolveram um tipo de frieza funcional, que a preserva do desespero que surpresas desagradáveis podem proporcionar. Mas essa dádiva que advém da experiência não chega a causar indiferença. No peito, apenas a mágoa que mata aos poucos de quem não tem a oportunidade nem espaço para dizer que, às vezes, as coisas não são tão simples quanto parecem.

2 comentários:

  1. Tem alguma semelhança com um programa que seu acrônimo significa SOCORRO?
    ahahaha
    Abraços, caro artesão das letras.

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  2. Nos SOCORRAM de tantos heróis e maniqueísmos.
    Um abraço, generoso colega Senha de Quatro Dígitos.

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