19 julho 2010

A negra de cabelos brancos

Sentada no canto, encostada na parede, a negra de cabelos brancos. A senhora viúva de sessenta e poucos que carrega o documento na sacola que é dela! Aquela senhora negra da vila, que vive de aluguel e canta errado o inglês da novela. A mulher de cabelos brancos que paga impostos pra construir estádio de futebol. Brasileira: alegre, mas infeliz. Alegria vazia, melancolia profunda.


Cabelo ruim. A pele contrastando com as vestes. As unhas sacrificadas. Veias das pernas em alto relevo. No cenário de sempre. Paredes brancas. A falta de espaço. Muita gente por perto. Sintam o cheiro da negra pobre que andou de sol a sol, depois de diluir o desodorante "spray" que pode comprar. Ainda tem que voltar pra casa a pé. “Minha condição, minha condução”. Conformada.
A negra analfabeta. A velha desdentada. A conversa da “nega veia”, analfabeta e desdentada. O "pobrema", o "tóchico", os "chinelo" no pé da cama. A bíblia ao pé da letra. Oremos. Salvem Maria, muié de José, mãe dos doze e da fiél torcida corintiana. Que trabalha desde cedo, desde nova, em casa de Família, para comer, para prover o pão nosso de cada dia. Mais de sessenta e não pode parar. Amém.
Ela ainda pode lembrar. Já faz mais de vinte anos. “Morre seo Zé aos quarenta e sete”, foi a manchete de jornal que nunca saiu. "Era só mais um Silva que a estrela não brilha". Ainda existem "Silvas" cuja a estrela, sem sangue e sem sigla, não brilha. O dedo não tem marca de aliança. Nunca mais teve “homi”. Nunca mais sentiu vontade. Nunca mais foi mulher.
Hoje, comum, sobrevive por aí. Mesmo quem não conhece, seria capaz de imaginar sua vida. Cada trapo, cada terço e cada traço conta a história de Maria Esperança, mais uma negra de cabelos brancos esperando atendimento no posto de saúde. O suor grosso a molhar o lenço na cabeça. A cintura gorda no banco desconfortável. Os seios que curvam as costas. As costas que cobram os anos. O tempo que já passou.
(foto [ilustração]: Leonardo Lara/ Festejo do Tambor Mineiro – Terra Magazine)

Um comentário:

  1. Como há negras de cabelos brancos! Há negras brancas também, e como! Abraços!

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